sexta-feira, 30 de abril de 2010

Crônica/09



Na beira daquela janela

Lá está ele de novo, o danado. Sempre que estou em casa, eu olho para fora. Os olhos buscam a imagem dele naquela janela mais alta.
Às vezes, ele parece olhar a vista, às vezes, está atento para o que acontece dentro do apartamento mesmo.
Ele se espreguiça, cochila ou simplesmente fica lá, parado. Tarde da noite, ele não dorme e nem eu, então, por um momento, nossos caminhos se cruzam de alguma forma. Insones na noite carioca – temos algo em comum, afinal.
Mas o que me mata é nossa diferença. E é singular mesmo. Somos diferentes em muitos aspectos, entretanto somente um deles me incomoda.
Eu estou no segundo andar do prédio onde moro; ele está no sexto andar do prédio vizinho, deitado no parapeito, tranqüilo na beira daquela janela. Eu tenho medo de altura, ele não.
Ele não deve ter sequer a consciência do que significa medo de altura; tem apenas o instinto de que deve se equilibrar. E ele sabe fazer isso. Não tem vertigens como eu, então essa tarefa fica menos difícil.
Aqui do segundo andar, eu o observo, admirada. Ele não me nota, nem sabe que eu existo e muito menos que eu o invejo.
Quem me dera não ter medo de altura. Quem me dera poder ter sido artista de circo, daquelas que andam na corda bamba e que voam e se contorcem pelos ares. Ou perna de pau. Ou alpinista. Mas meu corpo teima em ficar no chão quando poderia estar no alto. Só minha imaginação é que não tem medo de altura. Sabe até bater asas! Mas há dias em que isso não me é suficiente.
Lá de cima, parece que ele me olha, porém eu sei que é só uma impressão. Ainda que olhasse, não faria diferença. Eu não poderia lhe dar um tchauzinho esperando outro. E mesmo que o fizesse, o máximo que teria como resposta seria um olhar blasé, do tipo que só um gato consegue dar.

Imagem: "Mulher na janela", de Salvador Dali. Fonte: Urbanidades da Madeira.

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