domingo, 25 de abril de 2010

Conto/05



Do mar

Desde criança, Ana amava o mar. Gostava de brincar entre as ondas, não se incomodava com a água salgada e não tinha medo das marés. Também conseguia ficar por horas admirando-o, quieta, como se estivesse hipnotizada. O mar sabia desse amor, gostava de se sentir amado, mas se limitava apenas a observar. Era preciso que os pais de Ana viessem chamá-la para voltar para casa. Às vezes, a mãe ficava preocupada. Dizia ao pai:
- Essa menina, não sei não. Uma hora, entra no mar, fica lá dentro que nem uma boba e a maré acaba levando. As irmãs dela não são assim...
O pai, pescador, achava bobagem:
- Isso é só implicância sua. Deixa a menina! Se ela gosta tanto assim do mar, pode gostar dos peixes também e trabalhar comigo um dia.
Então, Ana cresceu. E o amor pelo mar permaneceu intacto. Começou a trabalhar com o pai, ajudando a carregar o balaio com os peixes. A carga era pesada, mas Ana não se importava. Em troca, o pai às vezes a levava nas pescarias. Ela tinha que acordar cedinho, tinha que ajudar a carregar as redes e fazia tudo sem reclamar. O pai achava que era um trabalho pesado para ela, porém precisava de ajuda e esse era o preço que cobrava a ela por querer ficar por algumas horas em alto mar.
Ana era moça bonita e começou a chamar a atenção dos rapazes do lugar. Não demorou muito para que um deles se tornasse seu namorado e depois seu marido. Aprovado pela família, pescador conhecido, era um sujeito trabalhador e também orgulhoso. Não queria que a esposa ajudasse na pesca, bastava que limpasse os peixes. Ana aceitou. Sabia que o marido não fazia isso para mantê-la afastada do mar, e sim porque achava que aquele era um serviço só dele. E continuava fazendo suas visitas. O mar se alegrava em vê-la, apesar de saber que ela agora era uma moça casada.
As visitas, sempre longas, passaram a ser motivo de reclamação do marido. Ana teve um filho, o marido lhe fazia cobranças:
- Por que ainda não arrumou a casa? Por que as panelas ainda estão sujas? Por que diabos o bebê estava na praia com você?
E ela ouvia calada. Como poderia dizer que precisava, que necessitava ver o mar? Como poderia argumentar que perdia a hora enquanto estava diante dele?
O marido passou a desconfiar, pensou que ela tinha um amante e começou a vigiá-la. Entretanto, sempre a via sozinha ou com o filho e percebeu que não existia outro homem. Ele se indagava: “Se não é um amante, o que será?”
E assim, os dias passaram. E logo, foram-se meses. Antes calada, Ana agora discutia com o marido. Dizia:
- Preciso ver o mar. Eu apenas não quero deixar de estar mais perto dele.
O marido achava a maior bobagem do mundo. Como uma mulher poderia se esquecer da vida que tinha para ficar admirando o mar? Para ele, era sinal de demência. E não sabia o que poderia ser pior: a suposição de antes, de que ela pudesse ter um amante, ou a idéia de que fosse louca.
Logo, a família de Ana ficou a par das brigas do casal. Não é possível esconder coisas assim por muito tempo. A mãe recomendava:
- Aprenda a ficar dentro de casa. Dê essa satisfação ao seu marido. Ele gosta tanto de você, não deixa faltar nada a vocês...
Até o pai se intrometeu:
- Eu nunca liguei para essa sua coisa de querer estar sempre perto do mar. E agora a situação está do jeito que está... Você tem que cuidar do seu casamento, minha filha. Seu marido pensava que você tinha um amante, que vergonha! E agora que viu que não era nada disso, pensa que você é maluca!
Ana tentou. Prometeu ao marido que as visitas iriam acabar. Enquanto isso, o mar sentia saudade daquele amor todo; amor que, afinal, era recíproco. À noite, começou a mandar recados pelo vento, dizendo que queria vê-la. E Ana ficava aflita, pois não podia ir, estava tentando salvar o casamento, levar a vida adiante. Então, noite após noite, ela começou a dormir mal, a ter pesadelos. Neles, ela era um dos peixes pescados pelo marido. Ele olhava satisfeito para aquela Ana transformada em peixe e dizia: “Esse deu trabalho, mas é dos bons”. E ela tentava pular, mas o marido a segurava. O esforço era vão, o sonho acabava da mesma forma: ela sempre era um peixe pescado e sempre acabava na panela, preparada por uma esposa que tinha seu rosto e seu corpo, mas não tinha sua alma.
Um dia, sonhou diferente. No sonho, nadava livre pelo mar, pertencia naturalmente a ele e nunca tinha se sentido tão feliz; nem no dia de seu casamento estivera tão contente assim. Acordou leve e não teve dúvidas: deixou o filho com a mãe e foi até a praia. O sonho era um sinal de que só perto do mar conseguiria se sentir bem.
O marido tinha ido à cidade, mas não tardou em voltar para casa. Não encontrou ninguém e logo suspeitou que Ana estivesse na praia. Foi atrás dela – e chegou tarde demais.
Na praia, o mar sussurrava todas as juras de amor guardadas. Ele estava feliz por voltar a vê-la, queria abraçá-la, queria ficar com ela para sempre. E Ana afirmou que, se correspondesse, aquilo significaria o fim do seu casamento. O mar ouviu, atento, e não teve mais dúvidas: pediu que ela se aproximasse.
Enquanto ela adentrava na água, o marido corria até a beira do mar. “Ana!”, gritava desesperado. Ela já não podia ouvi-lo, mesmo que em pouco tempo ele também estivesse já na água, nadando para alcançá-la. Aos poucos, ele notou, aterrorizado, que a mulher se transformava diante de seus olhos. Pensou que ela estivesse se afogando, até que as pernas sumiram e deram lugar a uma longa cauda de peixe. Ela jogou o vestido ao mar, enquanto seus braços e mãos logo se encheram de escamas. Os cabelos se ondularam ainda mais e logo as conchas o enfeitavam. E ele pôde ver quando o mar a envolveu e a beijou.
Ana se sentia feliz como em seu último sonho. Soubera desde cedo que era do mar e, que agora, ele decidira buscá-la. Ao longe, pareceu ter ouvido alguém chamar, mas o barulho das ondas abafou qualquer som que pudesse impedi-la de mergulhar para sempre dentro do oceano.


Fonte da imagem: Blog Janela da Minha Rua

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