Marie, marry me
Aqui estou eu, após tanto tempo, na cidadezinha praiana onde passei férias duas vezes. O lugar continua bonito, mas está tão diferente! Virou point, está lotado de pousadas e bares. Já não é mais cidadezinha: agora é destino turístico.
Subo as dunas para apreciar o pôr do sol. Há pessoas por perto, mas eu prefiro me manter distante delas. Subo mais um pouco e sento sozinho na “Pedra do beijo”.
Como num filme, me vejo aos doze anos. Imediatamente, me lembro de Marie. Ela tinha cabelos, olhos e lábios de mel. A pele era corada – culpa do sol. Marie foi a primeira garota que beijei.
Meus pais e eu ficamos na casa da tia Beatriz. Marie morava na casa ao lado. Um dia, me encontrou na praia, olhando o mar. Puxou assunto:
– Você vai ser meu vizinho?
– Só até o fim das férias.
– Então, eu preciso te mostrar umas coisas.
Depois disso, éramos como unha e carne. Até então, eu nem saía muito, justamente porque não tinha companhia. Marie fez questão de me mostrar tudo. Contava histórias, dava nomes de lugares e pessoas. O pai dela era francês, daí ser Marie e não Maria. Foi isso que ela me contou quando eu perguntei:
– Por que seu nome é Marie?
– Porque meus pais escolheram! – e riu-se toda.
– Tá, mas por que foi essa a escolha deles?
– É um nome francês. Meu pai é de Paris. Ele veio pra cá por causa da minha mãe, que é brasileira. Esse era o nome da minha bisavó.
– Você também é de Paris?
– Que nada! Nasci e cresci aqui. Só no ano passado é que conheci a capital.
– Seu nome é bonito.
– Mesmo?
– É. – eu precisava achar uma palavra melhor – É exótico!
Hoje eu não diria que é exótico, mas na época me parecia ser, por ser tratar de um nome estrangeiro. E a palavra caiu bem. Eu tinha aprendido havia pouco, no colégio. Marie gostou e sorriu com os olhos. Isso era algo que ela fazia muito bem.
– Vamos tomar sorvete! – e me puxou pela mão.
Eu ficava ansioso para encontrá-la, sonhava com ela, imaginava o que poderia mostrar se um dia ela voltasse à capital. Pensei até numa forma original de pedi-la em casamento.
– Marie, marry me.
Eu estava estudando inglês e achei fantástica a combinação das palavras. Primeiro, pensei em pedi-la em francês, mas a única palavra que conhecia fora o nome dela era “oui”. E isso devia ser a resposta ao meu pedido.
Numa tarde, Marie disse:
– Vamos lá para as dunas. Quero te mostrar a “Pedra do beijo”.
– Por que chamam assim?
– Dizem que é o lugar onde o fundador da cidade pediu a esposa em casamento. As pessoas falam que foi lá onde eles se beijaram pela primeira vez.
Meu coração ameaçou saltar fora do corpo quando ela disse isso. O que Marie tinha em mente? Será que ela sentia o mesmo que eu?
Já era costume nosso assistir ao pôr do sol. Nesse dia, só trocamos de lugar. A pedra ficava num ponto mais alto que as dunas, na beira de uma estrada de difícil acesso. Por isso, era mais fácil ir até lá subindo as dunas.
Quando sentamos, eu só conseguia pensar em como pedir um beijo. “Marie, me dá um beijo?”, “Marie, posso te beijar?”, “Marie, kiss me”. Mas quando a gente pensa demais em como fazer as coisas, elas sempre saem diferente de qualquer forma que a gente tenha imaginado.
Marie olhava o horizonte e parecia nem notar que eu olhava para ela. Tomei coragem e peguei na mão dela. Marie virou-se para mim. Pronto! O sol estava sumindo, era já ou nunca! Antes que eu dissesse qualquer coisa, minha quase francesa falou:
– Ivo, por que você não me beija?
Eu coloquei meu braço ao redor dela e puxei-a para junto de mim. Marie foi o meu sol naquele fim de tarde.
Não consigo conter um sorriso. Aqui no tempo real, o sol também se põe, mas Marie não está ao meu lado. Onde ela estará? Que terá acontecido com ela durante esses quinze anos? Será que ainda lembra de mim?
O final das férias foi terrível.
– Marie, eu vou embora depois de amanhã.
Ela disse:
– Eu já sabia.
– Sabia que eu vou depois de amanhã?
– Não, seu bobo... Sabia que você iria embora uma hora ou outra.
Daí, ela começou a chorar e me abraçou. Naquela época, eu me senti mais triste do que quando meu cachorro morreu ou quando meu time perdeu o campeonato e comecei a chorar também. Passamos um bom tempo assim, até que minha mãe me chamou:
– Ivo, vem arrumar suas coisas!
Combinamos de fazer um piquenique. Quando entrei, minha mãe disse:
– Você chorou, meu filho?
– Eu não! Por quê?
– Seus olhos... Estão vermelhos.
– Ah, foi água do mar que entrou.
– Sei... – e ela logo mudou de assunto. – Já se despediu da sua amiga?
– Mais ou menos.
– Como assim ‘mais ou menos’?
– A gente vai fazer um piquenique amanhã.
– É bom levar um presente para ela. Toma esse cordão. Ela merece ganhar uma coisa bem bonita. E eu nem cheguei a usar mesmo. Diz que é um presente nosso.
– Certo.
No dia seguinte, levei sanduíches, suco de laranja e o cordão.
– Eu tenho um presente para te dar. Meu e da minha mãe.
O pingente do cordão tinha um formato sugestivo: um coração. Marie colocou, agradeceu e disse:
– É lindo! Mas ficou grande...
– Ah, quando você crescer fica melhor.
– Quando você volta?
– No fim do ano, eu acho. Meus pais querem passar o Natal aqui.
– Vai me telefonar?
– Lógico! E vou mandar carta também!
– Se mandar mesmo, eu vou responder com certeza!
– Combinado!
E ela sorriu com os olhos mais uma vez.
Depois do piquenique, uma volta na praça. Marie teve uma idéia.
– Que tal se a gente escrever meu nome e o seu numa árvore?
Eu fui correndo pegar uma faca. Deu trabalho, mas valeu a pena. “Ivo e Marie para sempre”, em letras de forma. Uma obra digna da admiração dela.
– Ficou uma gracinha!
Marie chorou de novo quando disse “Tchau, Ivo”. Agarrou-se em mim com força. Depois que o carro saiu, abraçou a mãe. Eu vi tudo do banco traseiro, enquanto perdia a vergonha dos meus pais e também chorava mais uma vez.
A troca de cartas e telefonemas durou quatro meses. Durante esse tempo, tia Beatriz teve que vender a casa. Pensei se veria ou não Marie no final do ano.
Procuro a árvore. Sim, é aquela. Encontro nossos nomes. Precisam de um reparo. Há mais nomes em volta. Passo alguns instantes diante do lugar e decido voltar para a pousada. Já é tarde. A cidade fervilha, mas eu quero descansar.
É engraçado o rumo que a vida toma às vezes. A gente insiste em algo, mas uma série de acontecimentos muda tudo. Depois que a casa de tia Beatriz foi vendida, liguei para Marie contando tudo. Como resposta, ela disse que falaria com os pais, perguntaria se eu poderia ficar lá nas férias. Eles aceitaram.
Então, foi minha vez de conversar com meus pais. Lembro que eles achavam graça no nosso “namorico” e receberam com surpresa meu pedido de passar o Natal fora de casa. Acabaram concordando, com uma condição: eu tinha que voltar antes do ano novo. Minha mãe telefonou para acertar com os pais de Marie os detalhes da ida e da volta.
Passamos exatos dezoito dias juntos. No dia 31, cheguei em casa. Telefonei para ela e desejei “Feliz ano novo”. Foi a última vez que ouvi sua voz.
Na primeira carta após o reveillon, Marie contou que os negócios do pai não iam muito bem. Além disso, ele tinha recebido uma boa proposta de trabalho de um dos parentes na França. Era possível que eles fossem embora do país! Os estudos de francês de Marie foram intensificados. Essa foi sua carta final. A que enviei como resposta voltou. As seguintes também. Pouco depois, minha família e eu nos mudamos. O contato perdeu-se.
No dia seguinte, dou voltas e mais voltas pela cidade. Pergunto a todos daquela época se sabem o que aconteceu com a família de Marie. Eu queria ter vindo antes, entretanto sempre havia algo que me impedia ou adiava minha vinda: estudos, trabalho...
As pessoas me contam o que houve. Antes da partida, a mãe de Marie descobriu que o marido tinha uma amante. Ela não o perdoou. Pelo contrário: arrumou as malas e sumiu com a filha. Sem saber onde estavam as duas, o pai vendeu o que tinha e, segundo dizem, voltou para a França. Ninguém na cidade sabe o paradeiro de mãe e filha.
Depois de Marie, conheci Ana. E, ao longo dos anos, Paula, Bruna, Laura e Isabela. E outras, tantas outras... Todas as minhas namoradas tiveram ciúmes de Marie. Algumas tentaram rasgar as cartas e a única foto que eu tinha dela, então passei a deixar tudo sempre escondido. Nunca mais meu coração foi o mesmo. Eu me apaixonei por outras, sim. Contudo, era comum que, tarde da noite, eu pensasse nela. Constatei com o tempo que era ela quem eu desejava ver nas outras.
A cidadezinha teve minha presença por uma semana. Não foi por acaso que a escolhi para passar uma parte das férias. Vim na esperança de ter notícias e também para ter todas as lembranças de forma mais viva. Tudo que veio depois dela foi tão supérfluo. Não tinha mais aquela pureza, aquela graça do primeiro amor.
Penso sempre em como ela está, se mudou muito. Sei que vou encontrá-la algum dia. Mas tenho medo também. E se ela não se recordar de mim como eu me recordo dela? E se estiver casada e feliz? E se tiver se tornado uma daquelas pessoas super ocupadas, que só te dão 10 minutos de atenção porque o telefone não para de tocar? Ah, não adianta. Não terei respostas a não ser que a encontre.
Hoje é muito mais fácil achar quem ou o que você procura. Comecei com uma busca arcaica, solitária e, até agora, infrutífera. Talvez seja hora de apelar para um detetive ou um programa de televisão. Ou a Internet mesmo, por que não? Resisti bravamente aos avanços tecnológicos, mas se quero encontrá-la, não adianta esperar que o acaso nos una.
É dia de partir. Volto à “Pedra do beijo”. Juro a mim mesmo que quando encontrar Marie, as palavras não sumirão. Sei que é bobo prometer se isso sempre acontece comigo: a fala desaparece quando eu mais preciso. Mas agora não é hora de falar. Eu estou aqui para admirar o pôr-do-sol.
Sinto que alguém me observa, a poucos passos de distância. Volto-me para saber se é só uma sensação ou se tem mesmo alguém perto. Uma moça me fita. Ela diz:
– Desculpe! É que há muito tempo eu não venho aqui e, agora que vim, tem alguém sentado, admirando a paisagem. Eu fiquei com medo de incomodar, mas queria sentar aí onde você está e ver o pôr-do-sol.
– À vontade! Você não vai me incomodar, juro.
Ela chega mais perto e eu já não reparo mais na paisagem, só nela. A pele corada, olhos e cabelos de mel... Parece com... Meu Deus, eu não acredito! É ela! Marie!
Levanto-me, atordoado. Agora, frente a frente, ela me olha de modo diferente. Eu tenho que perguntar, tenho que falar alguma coisa! Mas, seguindo a ordem natural das coisas, ela se adianta e diz com surpresa:
– Ivo! É você?!
A única coisa que consigo fazer é olhá-la como um paspalho. Noto que ela usa o cordão com o pingente em formato de coração. Ela me abraça e continua falando:
– Nossa! Você não sabe como eu senti saudade! Há quanto tempo! Você reparou? Ainda uso o cordão que ganhei de você e da sua mãe. Agora, ele serve direitinho! Escuta Ivo, eu tenho que dizer... Tenho que dizer que nunca deixei de pensar em você. Nunca mesmo.
Agora, ela me olha, num misto de riso e choro:
– Mas só eu falo! E você? Não vai dizer nada?
É agora, Ivo. Você tem que falar algo inteligente, sem gaguejar. Você tem que dizer que também sentiu a falta dela, que nunca se sentiu tão bem com outra pessoa como se sentia com ela e, que por mais louco que isso possa parecer, você acredita que ela é a mulher da sua vida.
– Marie, marry me.
Quinze anos e isso é tudo que consigo articular! Ela deve estar pensando que eu sou um idiota. Ou um maluco. Mas ela me olha de uma forma serena. E sorri! Sorri com os olhos! Ela ainda faz isso muito bem. E assim, sorrindo e rindo, ela me diz o que eu sempre quis ouvir:
– Oui, Ivo, oui.
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