quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Crônica/28

Olhares - parte IV

Morava na rua e perambulava sempre pelo bairro Benfica (em Fortaleza) e suas adjacências. Quando eu trabalhava com telemarketing, sempre o via na hora de voltar para casa. Ele costumava ficar no ponto de ônibus em frente ao Cefet, na Avenida Treze de Maio. Eu sempre o encarava e vice-versa. E isso me chamava a atenção, porque eu nunca tinha visto um morador de rua que encarasse as pessoas do jeito que ele encarava.
Certa vez, lhe ofereci um chocolate – que ele educadamente recusou. Noutra ocasião, ele me sorriu – aliás, nesse episódio paira certa dúvida, pois não sei se o sorriso foi direcionado a mim ou se ele sorriu por outro motivo. Por várias vezes eu o via parado em alguma esquina, com os olhos distantes, perdidos.
Uma noite, aconteceu o inesperado: ele falou comigo. Eu passei e ele murmurou “boa noite”. Fiquei tão surpresa que não consegui responder. Parecia tão simples, era só responder a mesma coisa, mas a minha voz não saiu. Engraçado é que eu sempre quis que ele puxasse assunto comigo e então, quando ele o fez, eu não consegui falar nada.
Algum tempo depois, eu estava voltando do trabalho, tarde da noite, e ele me parou para pedir fósforos. Falei que não tinha. Ao chegar em casa, não tive dúvidas: fui até a cozinha, peguei alguns fósforos e um doce de goiaba e voltei ao lugar onde o tinha visto. Ele ainda estava lá, quietinho. Ao me ver, disse novamente:
- Você tem um fósforo?
Respondi:
- Agora eu tenho.
Junto com a caixinha, lhe entreguei o doce - e dessa vez ele não recusou minha oferta.
Às vezes, ele aparecia de barba feita, cabelo cortado e um aspecto mais limpo, como se tivesse tomado banho recentemente. Um dia, comentei com uma vizinha sobre o sujeito e ela me esclareceu:
- Ah, eu sei de quem você está falando. É o Nem. Ele tem família, tem casa, mas prefere a rua. Dizem que foi por causa de uma mulher que ele ficou assim.
Depois que ela me contou isso, fiquei um tempão com o olhar perdido - talvez como o do Nem - pensando no que um amor não correspondido é capaz de fazer com a vida da gente.

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