sábado, 8 de maio de 2010

Conto/07

Guerra e paz

- Vamos lá. Você quer que eu te conte uma história de amor? Então, eu vou te contar uma. Você tem que prestar atenção. Isso, senta aqui na varanda comigo. Ai, o costume de esperar mais um pôr do sol. Enquanto não anoitece, eu posso pensar em como estarei vestida para o meu encontro.
- Você tem um encontro???
- Por que o espanto? Não, eu não tenho um encontro. Eu devia ter. Escuta, eu pedi pra você prestar atenção, então você não pode ficar me interrompendo, certo?
- Certo.
- Hum, vejamos. Qual será meu modelito para hoje? Um vestido florido. Isso mesmo. E sapatos brancos. Cabelo em coque. Não, não. Ficaria muito formal... Cabelo solto, esvoaçante, com algumas presilhas. Presilha está na moda? Não, não precisa me responder. Foi uma daquelas perguntas que a gente faz sem querer ouvir resposta. E afinal, isso não importa. Eu vou estar linda e esse modelito parece ótimo. Quer dizer, pareceria se eu fosse mesmo me encontrar com ele. Mas isso não é possível. Sabe o que eu faço todas as tardes? Claro que sabe, nós moramos na mesma casa. Mesmo assim, eu vou te dizer, talvez você não preste muita atenção em mim. Todas as tardes eu me sento nessa varanda para me lembrar dele e do fato de que ele não está aqui. Até quando o Roberto era vivo. É, quem diria que eu fosse me casar. Mas casei e casei com um homem bom, decente, trabalhador. De alguma forma, ele, aquele que nunca veio, deve saber que eu me casei. Meu marido nunca soube dele. Bom, talvez o suficiente, eu nunca escondi que fui noiva antes de conhecê-lo. Que bom que ele não fez muitas perguntas sobre meu passado. Seu avô me fez feliz. Mesmo me sentindo feliz, veja você como são as coisas: tantos anos se passaram e eu nunca deixei de pensar no outro. Eu fui seguindo, levei minha vida adiante. Mas agora, o seu avô morreu e eu tenho tanto tempo livre, não há mais nada que me impeça de pensar sempre no outro. Eu já me aposentei, meus filhos estão crescidos. Então, eu passo o tempo remexendo na memória e me lembrando dele. Eu fico aqui imaginando como poderia ter ido esperar por ele naquele cais. Todos os dias escolho uma forma diferente de me vestir. Cada vestido lindo! Cada sapato maravilhoso! Mas tudo aqui, na minha cabeça. E mesmo sem aquelas formas que eu tinha, posso usar qualquer coisa. A imaginação é minha aliada. Já estou velha e o meu médico disse que é sempre bom exercitar a mente, ocupá-la. Então, eu passo o tempo pensando nesse encontro. É melhor do que fazer palavras cruzadas.
- Eu adoro palavras cruzadas.
- Eu sei que você adora palavras cruzadas. Você passa tanto tempo fazendo palavras cruzadas que nem deve reparar quando os meninos olham pra você!
- Os meninos não me olham, vó!
- Sei, sei. Eu também dizia isso para meus parentes. Você ficou corada, ha-ha.
- ...
- Essa coisa de idade é engraçada, menina. Às vezes, eu esqueço o nome de alguém – até o seu nome eu esqueço! Mas não esqueço o rosto dele na nossa despedida. Ele era tão lindo! É incrível como algumas coisas ficam mais vivas na memória que outras.
- Como ele era?
- Ele tinha uns olhos azuis assim bem vivos. Uma boca carnuda. E tinha um sorriso de dar inveja. Ele dizia: “Me espera, eu vou voltar”. E eu me lembro que no dia da partida dos oficiais, o uniforme dele tinha uma manchinha perto do bolso, eu avisei antes dele embarcar. Ele disse: “Bobagem. Meu capitão não percebeu. Ele tem outras preocupações”. Todo mundo tinha outras preocupações... Então, um dia, aquela carta chegou para a família dele. E a mãe dele me contou chorando a notícia, “Meu filho morreu na guerra! Nós vamos receber uma medalha. Pra que nós queremos uma medalha? Medalha não abraça, medalha não sorri, medalha não ama! Uma medalha só serve para saber que ele está morto por causa dessa guerra.”. E ela falou, falou, queria desabafar. Mas eu fiquei zonza, de repente parei de ouvir, acho que me transportei para outra dimensão.
- ...
- Você não precisa ficar me olhando com essa cara.
- É que é uma história triste, vó.
- Ué, você pediu pra ouvir uma história de amor, não foi? Às vezes, as histórias de amor são tristes. Quer história mais triste que “Romeu e Julieta”?
- “Romeu e Julieta” é uma história de ficção; a sua é real. Por isso, parece mais triste.
- Posso continuar?
- Sim.
- Lembra daquela caixinha de madeira que você viu comigo outro dia? Perguntou o que era e eu desconversei.
- Claro que lembro!
- Nela, eu guardo tudo do Giovani. Todas as cartas, inclusive a que dizia “Não se preocupe, ragazza, a guerra vai acabar logo e eu voltarei para os seus braços. Nós vamos nos encontrar no cais e vamos nos beijar como loucos, você vai ver”. Naquela caixinha tem também uma foto com dedicatória e até o meu anel de noivado. Eu quis vender para ajudar a pagar o funeral, a mãe dele foi quem não deixou. Disse que o anel era meu e pronto. Nunca foi difícil esconder essa caixa do seu avô. Ele não gostava de mexer nas minhas coisas, sempre foi tão seguro. Eu gostava disso. Eu amei seu avô, Natália, mas nunca esqueci o Giovani completamente. E todo mundo que sabia disso já morreu.
- E eu?
- Pois é, eu contei essa história para você e agora você é a única pessoa viva além de mim que sabe como eu amei outro homem e que até hoje penso em como seria me encontrar com ele. E agora você sabe também que todos os dias eu fico pensando em como me vestir para nosso encontro. Eu sei que um dia vou estar com ele novamente. Ele não pôde voltar, mas em algum lugar esse encontro ainda está marcado. Você deve achar que eu sou só uma velha caduca que não tem o que fazer, mas eu não ligo.
- Vó?
- Que foi?
- Isso tudo foi na época da guerra?
- Sim.
- E quanto tempo a guerra durou?
- Para uns, durou quatro anos. Mas dentro de mim, ela dura até hoje e a paz só vai chegar quando eu puder ver de novo aqueles olhos azuis me encarando e aquela boca carnuda dizendo “Giulia, estou aqui”.

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